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  • LMF São Carlos

Eleições Americanas

Um guia para entender o cenário político e os caminhos da eleição mais importante da década.


Em um ano pautado por intensas transformações econômicas, sociais e culturais, as eleições americanas do ciclo eleitoral de 2020 se avizinham e trazem um misto de medo e esperança em escala global. Em sua essência está a discussão de dois modelos e visões para o futuro do mundo - do qual os EUA serão parte e continuarão a desempenhar papel relevante no cenário internacional - que moldarão não só as respostas que serão dadas internamente às questões ferventes que a sociedade americana tanto demonstrou ansiar nestes últimos meses, mas também como o mundo lidará com as inevitáveis análises de um ano especialmente marcante.

Como sempre polarizadas e características de um sistema binário (onde apenas dois partidos exercem relevância no debate político), neste ano são apresentadas aos eleitores duas opções: a opção de dar sequência a um segundo mandato de Donald Trump ou o resgate da era Obama com Joe Biden. Até o dia três de novembro a polarização política tende a se acirrar cada vez mais e ainda assim, nada garante que nessa data ela cessará, como Trump já deu a entender nos últimos meses: em diversos tuítes ele levantou a hipótese de que a eleição pode ou está sendo fraudada e questionou especialmente o sistema de voto por carta (um mecanismo previsto no código eleitoral americano e que terá importância vital durante a pandemia do coronavírus).

A palavra “polêmico” é talvez a mais empregada para caracterizar a pessoa Donald Trump, embora seja igualmente empregada ao se descrever seu estilo de governo, tão centrado na personificação do presidente. Inédita (ou ao menos extremamente incomum) nas últimas décadas, a aproximação entre a figura do homem e papel do cargo nunca foi tão intensa. De um partido com pautas muito bem definidas (reforma fiscal, conservadorismo, intervencionismo externo e proteção à propriedade privada), o partido Republicano - também conhecido como GOP - hoje se baseia em uma base bem mais conservadora e rural do que em ciclos eleitorais passados. Grande parte de seus antigos líderes hoje estão escanteados e Trump vigia com bastante atenção qualquer desalinho por parte de seus aliados. A família Bush, outrora um clã importante dentro da estrutura do partido, atualmente se encontra muito enfraquecida e vários de seus membros são desafetos do atual presidente. Mitt Romney, candidato do partido em 2012, é talvez a única figura abertamente dissidente (inclusive votou a favor do impeachment de Trump no início deste ano, medida que acabou vencida no Senado) e certamente solitária. O finado John McCain, candidato em 2008, também passou seus últimos anos lutando contra a ascensão de Trump no partido.


Trump já demonstrava suas pretensões para um eventual segundo mandato ainda em seus primeiros anos de governo ao patentear o slogan “Keep America Great”, uma evolução do icônico “Make America Great Again” (MAGA). Seu estilo direto e combativo o catapultou à epicentros de inúmeras disputas políticas em seu próprio gabinete e acusações de corrupção. Desse estilo nasceu o trumpismo, movimento que sintetizava diversas correntes alternativas à filosofia tradicional do republicanismo derivado de Reagan. A mudança é perceptível já nas eleições especiais em diversos distritos nos últimos anos: cada vez mais candidatos alinhados ao antigo establishment são substituídos pela nova geração trumpista, que oferece uma paixão quase fanática aos seus ideais. Uma geração cada vez mais branca e que tornou mainstream teorias obscuras anti-ciência e antigoverno. Em um país em rápida transformação demográfica isso pode ser um enorme problema, já que as populações negras e hispânicas cada vez mais desempenham um papel vital nas eleições.

Se por um lado há um discurso claro e muito bem definido, por outro já não se vê o mesmo. O partido Democrata entrou em choque completo ao ver Hillary Clinton perder as eleições de 2016, vistas como uma certeza durante boa parte do período de campanha. Ao mesmo tempo em que viu os republicanos (famosos por serem um partido fragmentado com correntes como o Tea Party e um número incômodo de legisladores semi-independentes como Susan Collins) se unirem sob um estandarte comum, os democratas assistiram à ascensão da new left e a estruturação de uma ala mais à esquerda do partido, capitaneada pelo então pré-candidato Bernie Sanders, experiente senador de Vermont. Ao longo do mandato Trump e com o controle da câmara nas mãos de Nancy Pelosi, o partido buscou um alinhamento contra o presidente Trump e chegou a aprovar um pedido de impeachment, que naufragou no senado (controlado por Mitch McConnell do partido Republicano).

Nas primárias, várias lideranças democratas de diversas correntes do partido entraram na disputa. Entre diversos outros, nomes como os governadores John Hickenlooper de Colorado, Jay Inslee de Oregon e a senadora Kirsten Gillibrand de Nova York além da estrela em ascensão Beto O’Rourke (que quase desbancou o influente senador republicano Ted Cruz na eleição especial do Texas) e o polêmico prefeito de Nova York Bill de Blasio não conseguiram a tração necessária e acabaram desistindo da candidatura antes mesmo das primárias. Outros nomes igualmente famosos como os dos senadores Kamala Harris da Califórnia e Cory Booker de New Jersey até conseguiram gerar certa empolgação durante os primeiros debates, mas também acabaram abrindo mão de suas candidaturas antes do início do período de primárias.


Em um sistema que privilegia a lógica “winner takes all” e com tantos candidatos na disputa, os debates se tornaram cada vez mais acirrados e a ala progressista encabeçada por Bernie Sanders e Elizabeth Warren tomou os holofotes para si. Sanders representa o estado de Vermont e os eleitores socialistas tradicionais há décadas e é politicamente independente, apesar de votar alinhado com o partido democrata. Warren, senadora de Massachusetts, ex-professora de Harvard e famosa por ter confrontado executivos de Wall Street após a crise de 2008 foi a preferida do público brancos com educação superior e concentrados no nordeste dos EUA que engloba a área progressista de Boston, Nova York, Filadélfia, Baltimore e Washington).

Além deles, a ala moderada do partido viu a ascensão de Pete Buttigieg (prefeito de uma cidade pequena no conservador estado de Indiana, abertamente gay e com carreira militar e em grandes consultorias), Amy Klobuchar (senadora de Minnesota) e Michael Bloomberg (bilionário fundador da Bloomberg e ex-prefeito de Nova York). Os três sofreram nos debates e não conseguiram construir uma base eleitoral sólida, especialmente Bloomberg, visto como um dos favoritos assim que entrou na corrida eleitoral (tardiamente).



Após um início preocupante nos estados de Iowa e New Hampshire, Joe Biden ganhou as primárias da Carolina do Sul graças ao apoio da população negra do estado, que ainda lembra de seu tempo como vice presidente na era Obama. Alguns meses depois a disputa se limitou a Biden contra Sanders, em uma batalha para definir quem nortearia os rumos do partido para enfrentar Donald Trump. Com a consolidação de Biden, a grande questão se tornou como os apoiadores de candidatos mais à esquerda como Sanders e Warren votariam.

Entre o establishment democrata, a tese de que a eleição de 2016 fora perdida graças aos progressistas que ficaram em casa e não votaram em Hillary Clinton tomou forma. A caminho de mais um “racha” em um período especialmente delicado para o partido e seus eleitores, a solução foi construir uma base comum de propostas tanto moderadas quanto progressistas. A momentos do início da pandemia do coronavírus, o partido encarava com aflição as pesquisas. Donald Trump, fortalecido com a derrota de seu impeachment e energizando sua base, estava de volta ao seu jogo favorito: a guerra eleitoral.

Os números dos Estados Unidos na pandemia e o descaso de Trump vem custando muito caro à sua candidatura: de promissora, hoje sua chapa ao lado de Michael Pence vê chances cada vez menores de eleição. Sem poder realizar comícios de apoio e com as mortes por COVID-19 disparando e a economia (ponto principal de sua candidatura) naufragando, Trump despencou nas pesquisas.






Em meio à pandemia e a explosão de casos de coronavírus, os protestos por justiça à George Floyd foram o golpe final na reputação de Trump, aliada à guerra pessoal contra John Bolton (seu ex-conselheiro, que o denunciou em um livro recentemente publicado). Os protestos contra a discriminação racial sistemática energizou a população negra a protestar por todo o país por reformas no sistema policial e de justiça de uma forma que não encontrava-se precedentes desde a era de Martin Luther King Jr.


A resposta do presidente foi acusar o movimento de ser violento e perigoso. Repetidamente, atacou manifestantes nas redes sociais e a política de remoção de estátuas de figuras históricas consideradas racistas. Em meio a um debate intenso, sua rejeição entre os eleitores independentes e principalmente nos Swing States (estados que não são majoritariamente democratas ou republicanos e que por isso geralmente definem o vencedor de cada eleição presidencial) cresceu a ponto de criar cenários antes inimagináveis. Nas eleições legislativas de 2018, a chamada “onda azul democrata” conseguiu manter a maioria no Congresso, apesar de não retomar o controle do Senado.


Nas eleições senatoriais especiais de 2020, já se considera possível que o partido democrata assuma o controle das duas estruturas políticas. Em uma eleição que bate recordes no volume de doação a campanhas, a tensão política e a radicalização do debate vão desempenhar papéis relevantes na definição do resultado. A escolha de Kamala Harris, senadora democrata da Califórnia e ex-procuradora geral do estado para ser a candidata a vice-presidente diz muito sobre as expectativas da sociedade americana (ou parte dela). Harris, se eleita, será a primeira mulher a ocupar o posto de vice-presidente, além de ao longo de sua carreira ter sido a primeira mulher negra a ocupar diversos cargos políticos.

Em um país envolto em uma intensa mudança demográfica, onde crescem a população latina e negra, a presença de uma candidata negra na disputa presidencial é marcante. Temas como representatividade e a campanha do #MeToo alavancaram à primeira prateleira debates sobre a presença de minorias em altos cargos de governo. Se essa representatividade vai ser referendada pela maioria, é praticamente consenso dos especialistas já. Resta saber se essa maioria dos votos vai se traduzir em vitória no Colégio Eleitoral. Pelos números da pandemia, economia e engajamento em mudanças sociais, tudo indica que vários políticos republicanos devem enfrentar um grande dilema: como se preparar para um mundo pós Trump, mas ainda relevantemente trumpista?

Quanto aos democratas, a expectativa é toda em relação ao estilo e as propostas de Harris. Joe Biden, se eleito, vai assumir como o presidente mais velho da história americana e já indicou que pretendia escolher como vice alguém capaz de levar adiante seu legado. Sem participar de muitas entrevistas ou debates nos últimos meses, vários de seus opositores questionam seu estado de saúde para governar o país. Mais do que suas propostas para a pandemia, economia ou demandas sociais de reforma, o voto para os democratas é um voto anti-Trump. Enquanto que a eleição é sobre Trump, um eventual mandato de Biden trará muito mais escrutínio às suas propostas e um olhar mais atento ao programa político democrata, especialmente para os eleitores progressistas e a ala socialista do partido.





Autor: Luca Kiatake Creppe

Liga de Mercado Financeiro de São Carlos (USP e

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