Desde a revolução industrial, o comércio global se intensificou de maneira exponencial. Com o surgimento de meios de transportes mais eficientes, as cadeias de suprimentos tornaram-se globais, aumentando o volume transacionado entre diferentes nações e, por conseguinte, reduzindo os custos de produção. Nesse cenário, os navios, que já eram importantes secularmente, tornaram-se imprescindíveis, sendo responsáveis por transportar matérias-primas, produtos finais, alimentos e combustíveis por rotas estratégicas, entre cidades de importância mundial. Qual seria o efeito de uma quebra dessa cadeia de suprimentos global?
No dia 23 de março de 2021, o navio Ever Given, da empresa Evergreen (ticker 2603 na bolsa de Taiwan) estava em rota de Yantián, na China, até Roterdã, maior porto europeu, que fica na Holanda, quando encalhou em uma parte estreita do Canal de Suez. A embarcação, de 400 metros de comprimento, possui capacidade de carga de 20.000 contêineres de 6 metros, podendo pesar até 219 mil toneladas. De início, imaginou-se que o prejuízo estaria na estrutura do navio e na sua carga, visto que poderiam ter sido danificadas com o impacto sofrido após as rajadas de vento “empurrarem” a embarcação contra a lateral do canal. Porém, com o passar do tempo, observou-se que, devido ao seu tamanho, o problema era maior do que o esperado, com prejuízos para toda a cadeia de suprimento global.
O Canal de Suez é crucial no comércio mundial. Sendo uma das principais artérias econômicas do planeta, o estreito de 200 km de extensão conecta o Mar Mediterrâneo ao Oceano Índico de forma direta, evitando com que as embarcações tenham que utilizar o Cabo da Boa Esperança, no sul do continente africano, para conseguir chegar às Américas e à Europa. Estima-se que 12% do comércio global passa pelo estreito, com US$5.1 bilhões e US$4.5 bilhões diários em mercadorias destinadas ao ocidente e ao oriente, respectivamente. A partir do momento que o Ever Given encalhou, tal caminho foi completamente bloqueado. Portanto, para uma embarcação continuar seu trajeto para o ocidente (ou do ocidente para o oriente), deveria contornar toda costa africana, em um caminho que levaria, aproximadamente, 9000 km a mais de distância (ou 9 dias a mais de viagem) do que o trajeto pelo estreito. Como essa mudança de rota afeta os preços dos produtos transportados?
O frete é cobrado por todas as mercadorias que são transportadas de um lugar para o outro. Em seu cálculo, algumas características são consideradas a fim de gerar lucro para as transportadoras, como, por exemplo, o peso da mercadoria, seu valor, a quantia de quilômetros rodados, o risco do local e as taxas de navegação. A partir do momento em que o Canal de Suez foi completamente bloqueado, houve o aumento do valor cobrado em relação à distância percorrida, visto que o caminho aos principais centros consumidores quase dobrou (10.000km iniciais para 19.000 km após os desvios pela África). Além disso, os navios que fizeram tal desvio elevaram suas taxas de gerenciamento de risco (chamadas de GRIS) devido ao aumento no risco de serem atacados por piratas na costa africana (como piratas somalis). Sendo assim, aumentou-se o valor do transporte (custando até 20% a mais do que o valor inicial) e, consequentemente, todos os preços de mercadorias transportadas tiveram que ser reajustados pela situação.
No dia 23 de março, dia do ocorrido, observou-se um aumento de contratos de petróleo, visto que o Canal de Suez era uma das principais rotas de embarcações petrolíferas. Aproximadamente, 1 milhão de barris de petróleo passam todos os dias no estreito, além de 8% de todo o gás natural do planeta. Dessa forma, os contratos dos petróleos Brent e WTI subiram quase 6% frente ao risco da oferta do combustível. Além disso, observou-se falta de alguns produtos específicos nos mercados europeu e africano, como peças automotivas e até mesmo café solúvel. Portanto, além dos prejuízos causados diretamente pelo impedimento de passagem, que totalizaram US$400 milhões por hora no período do bloqueio, houve falta de oferta de diferentes produtos em diferentes mercados globais.
Finalmente, no dia 29 de março, o Ever Given desencalhou e foi direcionado a um espaço que não causava impedimento no trânsito do canal. Dessa forma, o fluxo de embarcações voltou ao normal após 6 dias de bloqueio. Observando tal evento, é instintivo refletir sobre a complexidade das cadeias de suprimentos globais e, ao mesmo tempo, a sua fragilidade. O comércio eurasiático, um dos maiores (em volume e valor) do planeta, depende, diretamente, de um canal de 300 metros de largura que já foi até palco de guerra. Portanto, tamanho avanço ainda é suscetível a ocorrências locais que, dada sua importância, tornam-se eventos de consequências econômicas globais.
Fontes: Infomoney, BBC, Uol, Investing.com, Valor Econômico
Autor: João Lucas Rossi Mazzoni| LinkedIn
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