Desde que assumiu a presidência, Joe Biden tem se mostrado um dos presidentes mais ativos em seus primeiros 100 dias de governo. Confrontado com inúmeros desafios de máxima urgência como o combate à pandemia via vacinação, o desemprego e um país altamente polarizado, ele aposta alto em suas propostas. O ciclo eleitoral estadunidense é extremamente punitivo para o partido que não passe boa impressão no início de mandato, e o espaço de manobra dos democratas é pequeno, com a liderança do congresso sustentada pelo partido em margens mínimas.
Crises que marcam gerações têm o potencial de tornar os governantes mais criativos e facilita a adoção de medidas novas como ferramenta de combate ao problema. Joe Biden deixa claro pela sua postura e por suas ações que almeja se tornar um presidente que deixe um legado profundo no país. Na área econômica, um audacioso plano de recuperação está sendo colocado em execução. A competição com China, os inúmeros desafios no combate à discriminação racial e o acesso dos mais pobres a programas governamentais tem pautado muitas dessas decisões. Para entendê-las, é necessário se voltar para os anos 1980 e o Reaganomics, projeto econômico do governo Reagan que moldaria a forma de se pensar e legislar sobre economia pelos próximos 40 anos.
Uma de suas características marcantes é a crença de que governos devem buscar a eficiência e segurança através do controle da dívida pública e da diminuição de gastos em programas vistos como desnecessários, além de estimular a iniciativa privada através de estímulos fiscais. Não há consenso entre economistas quanto ao sucesso ou fracasso dessa doutrina, mas alguns efeitos do ‘trickle-down economics’ potencializaram uma recuperação desigual durante a pandemia do Covid-19 no governo Trump.
Biden propõe em seu novo pacote uma ruptura a essas práticas, defendendo o combate à desigualdade e a centralização do debate na questão climática. Juntos, esses pacotes somam mais de US$ 4 trilhões. O primeiro deles, aprovado em março passado, foi direcionado ao setor de saúde e ao combate ao desemprego, com o objetivo de vacinar 100 milhões de americanos nos 100 primeiros dias de governo e proceder a reabertura das escolas. O financiamento deste plano será integralmente por conta do governo americano, sem aumento de impostos. Porém, é nos seguintes que se encontra o cerne da política apelidada de Bidenomics: o American Rescue Plan propõe o aumento da cobertura de seguros de saúde para até 97% da população; o perdão da dívida estudantil e instituir a gratuidade do ensino superior para quem ganha menos de US$ 125,000 por ano; o aumento do salário mínimo para US$ 15 por hora; o investimento de US$ 1,3 trilhões em infraestrutura ao longo de 10 anos e US$ 2 trilhões adicionais em energia renovável durante seu primeiro mandato. Para financiar essa operação, está previsto o aumento da arrecadação de impostos em mais de US$ 4 trilhões, a partir do aumento para 39,6% da taxa máxima de contribuição (hoje é de 37%) e do aumento a 28% na arrecadação de impostos de grandes corporações (hoje é de 21%).
O impacto deverá atingir diversos setores da economia do país, com investimentos nas áreas de energia e mobilidade verde, infraestrutura de tecnologia e internet, reforma de edifícios públicos para otimização do consumo de energia e redução gradual do uso de combustíveis fósseis. Outros incentivos incluem a pesquisa e desenvolvimento de tecnologias renováveis e esforços climáticos, além de estímulos diretos à indústria norte-americana para retomar o seu protagonismo, hoje eclipsado pela China. No âmbito social, propõe-se a redução de 65 para 60 anos no acesso ao Medicare e a diminuição na taxação de saúde para pessoas de baixa renda.
Caso obtenha sucesso, o Bidenomics marcará o fim de uma era onde o consenso se dava ao redor da ideia de desonerar o setor privado na busca pelo crescimento econômico. O foco na classe média e nos ‘dois terços mais pobres' prevê o aumento do consumo e da força de trabalho disponível, com muitos hoje alocados em subempregos. Para minimizar o risco de inflação, considera-se que o crescimento econômico direcione o aumento da arrecadação e não altere significativamente a razão dívida-PIB. Apesar de ser um terreno novo, a expectativa é de que o déficit e a emissão de dívida sejam compensados pelos benefícios conseguidos pelos investimentos feitos. Além disso, como a política monetária americana é menos suscetível a flutuações cambiais, o impacto é muito menor do que em economias baseadas em outras moedas.
Reformulando o ‘Consenso de Washington’, o plano Biden pretende mudar o modo com que se pensa economia no establishment político. Algumas diferenças podem ser notadas na interpretação de inflação e política fiscal, onde é defendido que deve-se combater persistentemente o desemprego, pois o risco inflacionário é baixo, e que se ainda assim houver, o custo social é muito mais baixo do que o desemprego contínuo. Além disso, as propostas se baseiam na visão de que baixas taxas de juros no mundo mostram que em geral têm-se reservas pessoais cheias e demanda fraca, implicando que déficits não impactariam na dinâmica de mercado ao serem utilizados para estimular o crescimento. Por fim, a crença de que o aumento do salário mínimo não impacta no desemprego e que, apesar da dívida pública ter crescido nos últimos anos ao mesmo tempo em que as a taxa de juros caíram para mínimas históricas sem implicar risco inflacionário, deve auxiliar o governo no convencimento de críticos da proposta. Estes alegam que essa visão implica o pressuposto de inexistência de limites para a definição do tamanho de estímulos econômicos por parte do governo, gerando grandes possibilidades de inflação ou desaceleração a longo prazo.
Por ora, Biden vai tendo sucesso em sua estratégia, com ampla vacinação da população e indícios de aquecimento da economia dos EUA. Os desafios seguintes prometem ser maiores, com margens apertadas no congresso para a aprovação de medidas. Apesar disso, seu governo já conquistou um lugar na história americana, ao ditar novos rumos para uma economia que precisa se fortalecer rapidamente frente ao crescimento da China e das pressões econômicas, políticas e sociais internas. Ao menos na promessa, um futuro EUA baseado em energias renováveis, maior acesso à educação superior, redução de desigualdades e economicamente forte já foi encomendado.
Referências
https://www.investopedia.com/joe-biden-s-economic-plan-save-the-middle-class-4769869
https://www.wsj.com/articles/how-bidenomics-seeks-to-remake-the-economic-consensus-11617796981
https://www.nytimes.com/2021/01/14/business/economy/biden-stimulus-plan.html
https://www.washingtonpost.com/business/2021/04/22/biden-economy-100-days/
Autor: Luca Kiatake Creppe | LinkedIn
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